Cobrança da contribuição no estado de destino está em desconformidade com o critério de partilha das competências tributárias
Com a
reforma tributária veiculada pela EC 132/2023, foi permitida a cobrança das polêmicas contribuições que oneram o agronegócio[1]. O artigo 136 do
ADCT admite a cobrança de contribuições sobre produtos primários e semielaborados, como condição para usufruir de incentivos fiscais e regimes especiais, mas impõe diversas condições:O fato gerador seja a saída de produtos primários ou semielaborados;
A destinação seja fundo de infraestrutura e habitação;
Essas contribuições sejam uma condição para usufruir incentivos fiscais de ICMS (diferimento e regimes especiais);
A cobrança esteja em vigor no dia 30 de abril de 2023 e continue com a mesma alíquota e sobre a mesma base de cálculo; e
Extinção da contribuição anterior vinculada são ICMS.
Não obstante a clara determinação constitucional, já temos a primeira tentativa de cobrança de contribuição sobre exportação de produtos agrícolas sem atender às condições do artigo 136 do ADCT, pela Lei 12.428/2024 do estado do Maranhão[2].
Além da inconstitucionalidade da lei maranhense pela violação ao artigo 136 do ADCT, temos que considerar a possibilidade de surgimento de outros conflitos federativos, pois essa contribuição é exigida na “entrada de grãos para formação de lote ou remessa com fim específico de exportação, quando realizada por contribuinte de outra unidade da Federação.” (Lei 12.428/2024, artigo 3º, III).
Tal cobrança esbarra no artigo 150, V, da Constituição Federal que proíbe “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.”
Desde o início da vigência da Contribuição Especial de Grãos, cargas rodoviárias e ferroviárias foram paralisados nas fronteiras do estado do Maranhão, para cobrança desse tributo estadual, que representa uma verdadeira limitação ao tráfego de bens, vedada pelo artigo 150, V da Constituição Federal.
Há, também, ofensa ao artigo 152 da Constituição Federal que proíbe quaisquer vedações em razão de sua procedência ou destino. Nesse ponto, é da maior relevância lembrar que a jurisprudência do Plenário do
Supremo Tribunal Federal é firme ao impedir o tratamento diferenciado de produtos em razão do Estado origem ou destino. (STF, ADI 5.363, relator ministro Luiz Fux, j. 12-9-2023, P, DJE de 4-10-2023; ADI 3936 MC, relator ministro Gilmar Mendes, j. 19.09.2007, DJ 09.11.2007; STF, ADI 3.389 e ADI 3.673, relator ministro Joaquim Barbosa, j. 6-9-2007, P, DJ de 1º-2-2008).
A limitação ao trafego de pessoas também foi o fundamento pelo qual Plenário do STF julgou inconstitucional a cobrança de ICMS em duplicidade pelo estado do Piauí (destino), quando esse tributo já era devido no estado de origem das mercadorias. No julgamento, o STF reafirmou a competência do estado de origem para a cobrança do ICMS (ADI 4565 MC, rel. Min. Joaquim Barbosa, J. 07.04.2011, DJ 27.07.2011).
Como se vê, o estado do Maranhão pretende estabelecer uma verdadeira limitação ao tráfego de grãos (soja e milho) em seu território, uma diferença tributária entre bens em razão de sua procedência ou destino, o que encontra óbice no artigos. 150, V e 152 da Constituição Federal.
E, tendo em vista que os mesmos grãos de soja e milho já estão sujeitos à contribuição nos seus respectivos estados de origem, haverá dupla incidência do mesmo tributo em violação aos princípios da capacidade contributiva e do não confisco (art. 145, §1º e art. 150, IV da Constituição Federal).
A cobrança da contribuição no estado de destino está em desconformidade com o critério de partilha das competências tributárias. De fato, apesar de nosso país ter adotado a forma federativa, com autonomia dos estados e municípios, a cobrança de tributos federais, estaduais ou municipais deve ser feita de modo uniforme.
Tanto é assim que a Constituição Federal prevê lei complementar para disciplinar o ICMS (artigo 155, §2º, XII da CF), exige resolução do Senado Federal para estabelecer alíquotas interestaduais e de exportação (artigo 155, §2º, IV da CF). O imposto causa mortis e o imposto sobre serviços também têm alíquotas fixadas de modo uniforme no território nacional (artigo 155, §6º, I e 156, §3º, I da CF).
Não pode o estado do Maranhão exigir a contribuição especial de grãos em desarmonia com a prática dos demais estados e, o que é ainda pior, em duplicidade.
As contribuições atualmente tratadas pelo artigo 136 do ADCT são cobradas segundo a lógica do ICMS, no estado de origem dos produtos, pelos estados de Goiás (FUNDEINFRA, Lei 21.670/2022), Mato Grosso (FETHAB, Lei 7.263/2000), Mato Grosso do Sul (FUNDERSUL, Decreto 9.542/99), Tocantins (Lei 4.303/2023) e o Piauí (FDI, Decreto 21.869/2023).
Isso porque, a competência para cobrança do ICMS, para concessão de incentivos fiscais e consequentemente para cobrança das contribuições do artigo 136 do ADCT é do estado de origem do produto.
O artigo 136 do ADCT manteve a cobrança de contribuição sobre produtos primários, como condição de diferimento ou regime especial de ICMS, usando a mesma racionalidade do ICMS. Ou seja, a competência é do estado de origem. É o estado do origem dos produtos primários que têm competência para conceder incentivos fiscais de ICMS e cobrar contribuição como condição para usufrui-los.
O estado de destino dos produtos primários não pode cobrar a contribuição tratada do artigo 136 do ADCT. O estado de destino, como o Maranhão, no caso, não pode conceder incentivos fiscais de ICMS a contribuintes localizados fora de seu território e, consequentemente, não pode cobrar a contribuição aqui tratada.
Outra inconstitucionalidade evidente diz respeito ao fato gerador da Contribuição Especial de Grãos, que incide sobre a saída de mercadorias com destino à exportação e esbarra na imunidade prevista no art. 155, §2º, X, A, da Constituição Federal.
Ora, a cobrança da Contribuição Especial de Grãos – que é um verdadeiro adicional ao ICMS – se dá no momento da exportação: seja pela saída para a zona portuária, seja pela saída interestadual com fins de exportação ou pela entrada para formação de lote de exportação.
Sabemos que o Porto de Itaqui, que se localiza no estado do Maranhão, é o maior porto do Nordeste brasileiro, conhecido por exportar soja e milho a granel para Europa, América do Norte e Ásia.
E nossa Constituição Federal prevê a imunidade das exportações às contribuições (artigo 149, §2º, I) e ao ICMS, por força do artigo 155, §2º, X, A, da Constituição Federal. E as operações de exportação também não sofrerão a incidência do IBS e da CBS, por força do art. 156-A, III da Constituição Federal.
Em relação ao ICMS, a imunidade constitucional foi confirmada pela Lei Complementar 87/96, no artigo 3º, que prevê que o imposto não incide sobre “operação e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semielaborados ou serviços”.
E, o parágrafo único, artigo 3º, parágrafo único, I e II, da LC 87/96 determina que as operações de remessa de mercadoria para exportação, destinadas a empresa comercial exportadora, trading ou outro estabelecimento da mesma empresa, armazém alfandegado ou entreposto aduaneiro, também não sofrem a incidência do ICMS.
A jurisprudência pacífica do Plenário do Supremo Tribunal Federal reconhece que a imunidade do ICMS na exportação alcança também operações de exportação indireta, quando a mercadoria é vendida para uma trading (STF, RE 759.244, relator ministro Edson Fachin, j. 12.02.2020 e ADI 4735, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 12.02.2020)
Não há dúvida que o alcance do artigo 136 do ADCT deverá ser objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal, que deverá assegurar a eficácia da repartição de competências tributárias e dos princípios constitucionais, notadamente o princípio da neutralidade das exportações, da simplificação e da segurança jurídica.
Sem uma atuação firme do Supremo Tribunal Federal estaremos diante da possibilidade de retomada dos nocivos conflitos federativos que ocasionaram a guerra fiscal e resultaram em graves distorções econômicas e logísticas no território nacional.