A quem serve a manutenção do Perse?
Em novembro, a Receita Federal do Brasil divulgou a lista dos beneficiários do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) a partir das informações contidas na Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (DIRBI)[1]. Somente em 2024, foram concedidos R$ 9,6 bilhões em incentivos fiscais.
O Perse foi instituído pela Lei 14.148/2021 para mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19 no setor de eventos. A legislação previu a adoção de ações emergenciais e temporárias, com a possibilidade de transação com desconto de até 70% (setenta por cento) sobre o valor total da dívida e o prazo máximo para sua quitação de até 145 (cento e quarenta e cinco) meses, além da previsão de concessão de benefício fiscal de alíquota zero pelo prazo de 60 (sessenta) meses para PIS, Cofins, CSLL e IRPJ.
É justamente o benefício fiscal o ponto de maior polêmica e debate.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
A Lei 14.148/2021 foi publicada, originalmente, em maio de 2021, e não trazia em seu bojo a previsão do benefício de alíquota zero para IRPJ, CSLL, PIS ou Cofins. Isso ocorreu com sua republicação, em março de 2022, nos termos de seu artigo 4º. Nesse ínterim, houve a edição da Portaria ME 7.136/2021, que estabeleceu os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) vinculados ao setor de eventos, em atendimento ao § 1º do artigo 2º da lei.
Como se vê, a edição da Portaria ME 7.136/2021 foi efetuada sem que estivesse em vigor o benefício da alíquota zero, mas apenas os dispositivos referentes à renegociação de dívidas.
Logo já se pôde constatar que as atividades constantes dos anexos da Portaria ME 7.136/2021 iam muito além daquelas ligadas ao setor de eventos que efetivamente foram prejudicadas pela imposição do isolamento social.
Posteriormente, a Medida Provisória 1.147/2022 veio a alterar o artigo 4º da Lei 14.148/2021, estabelecendo que os CNAEs beneficiados com alíquota zero seriam aqueles definidos em ato da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia. Isso permitiu a edição da Portaria ME 11.266/2022, que trouxe duas importantes alterações no âmbito do Perse: a limitação das atividades relacionadas ao setor de eventos que se beneficiariam da alíquota zero e a previsão da necessidade de possuir o cadastro regular perante o Ministério do Turismo (Cadastur), para atividades outras que seriam equiparadas àquelas do setor de eventos no âmbito do Perse.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
A Medida Provisória 1.147/2022 foi convertida na Lei 14.592/2023, que passou a prever em seu bojo tanto os CNAEs elegíveis para adesão ao Perse, quanto às situações em que o registro no Cadastur é obrigatório. Também previu que a alíquota zero seria aplicada somente sobre os resultados e as receitas obtidas diretamente das atividades indicadas na lei.
No entanto, a MP 1.202/2023 previu a revogação do benefício fiscal para 1º de abril de 2024 para a CSLL, PIS e COFINS, e 1º de Janeiro de 2025 quanto ao IRPJ. Dentre as razões apontadas na exposição de motivos, constou o impacto fiscal do benefício, além da ausência de estudos hábeis a demonstrar a relevância e eficácia do gasto indireto. Após pressão do Congresso Nacional, foi sancionada a Lei 14.859/2024, que revogou a antecipação do fim do benefício fiscal e estabeleceu limites e requisitos para a fruição do benefício.
A partir da evolução legislativa acima descrita, se analisarmos o contexto em que foi previsto o benefício, somente as atividades relacionadas diretamente ao setor de eventos deveriam usufruir da alíquota zero, no intuito de promover a recuperação econômica de empresas duramente afetadas pelos efeitos da pandemia.
O que observamos com a lista divulgada pela Receita Federal do Brasil é um panorama bem diverso: dentre as empresas mais beneficiadas, o iFood é aquela que mais recebeu incentivos do Perse (R$ 336 milhões), seguida da Azul Linhas Aéreas (R$ 303 milhões) e a Enotel Hotel e Resorts (R$ 171 milhões), além de uma série de influenciadores digitais.
Os dados divulgados revelam, portanto, o desvirtuamento do programa. Criado para ser um benefício fiscal temporário, após quase cinco anos da pandemia da Covid-19, tem se prolongado no tempo graças às sucessivas edições de leis; destinado a mitigar as perdas do setor de eventos, aqueles que mais usufruíram foram empresas com alto faturamento.
Não se está a refutar a concessão do benefício fiscal especificamente para empresas do setor de eventos duramente afetadas pela pandemia, as quais, sem o favor fiscal, talvez não tivessem como se recuperar financeiramente. No entanto, admitir que empresas de grande porte econômico e que não se enquadram efetivamente no setor de eventos se beneficiem da alíquota zero do IRPJ, CSLL, PIS e Cofins atenta contra a mens legis, onerando toda a sociedade.
Para o caso específico do serviço de delivery, não é possível admitir que esse tipo de prestação de serviço seja tido como diretamente vinculado ao setor de eventos, o qual sofreu severas quedas de faturamento na pandemia. Ao contrário, tais atividades tiveram um crescimento jamais visto até então[2], impulsionado, precisamente, pelo isolamento social.
Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!
Os benefícios fiscais devem ser interpretados restritivamente e com respeito aos princípios da legalidade e da isonomia, a fim de que possam servir de estímulo às atividades visadas pelas políticas públicas. Admitir que empresas que sempre gozaram de excelente saúde financeira possam deixar de recolher milhões em tributos, mesmo após o fim da pandemia, sob o entendimento de que seriam equiparadas às pessoas jurídicas que realmente sofreram os reveses do isolamento social, atenta inclusive contra a justiça tributária, alçada a princípio constitucional no artigo 145, §3º da Constituição Federal (EC 132/2023).
Não se pode esquecer que a concessão de benefício fiscal setorial implica, de outro lado, em deixar de alocar recursos para investimentos em outras políticas públicas. Se a manutenção do Perse beneficia empresas com maior capacidade contributiva, observa-se um nítido desvio da finalidade para a qual foi instituído e a necessidade de repensar o programa.
[1] Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2024/novembro/receita-federal-publica-informacoes-com-perfil-dos-beneficiarios-do-perse
[2] Conforme dados da Abrasel, em meados de 2021, 89% dos estabelecimentos brasileiros utilizavam o delivery em suas estratégias de vendas, representando um aumento de 29% se comparado ao período pré-pandemia. Disponível em:https://abrasel.com.br/revista/mercado/delivery-pandemia/. Acesso em 01/12/2024.
0 comentários:
Postar um comentário