quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

FMI alerta: está excessivamente elevado o risco de falência de empresas

Aumentar os juros nestas circunstâncias é uma receita certa de fragilidade financeira




Recentemente, um artigo no blog do Fundo Monetário Internacional (FMI) tocou um alarme importante: “os países devem agir agora para limitar os riscos crescentes de problemas corporativos”. Como denotam os autores, muitas empresas no mundo tiveram de endividar-se para fazer frente aos choques de demanda na pandemia, seguidos pelo aumento dos custos de produção gerados pela invasão russa à Ucrânia. No Brasil, a situação se aplica às empresas, às famílias, e, sim, aos governos. Neste contexto, o debate sobre os juros não é, como alguns querem colocar no Brasil, uma simples disputa política: ele pode ser decisivo para a recuperação e a possibilidade de retomada do crescimento da produção, do emprego e do desenvolvimento global e do Brasil.

Os resultados do artigo mencionado acima se calcam no modelo que é a base para o chamado exercício de alerta precoce (EWE) – uma avaliação semestral do FMI e do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) dos riscos de uma crise gerada a partir da deterioração da estrutura de balanço das empresas e famílias, também conhecidos como riscos de cauda. Não por coincidência, o EWE foi criado em 2008, dada a falha da maior parte das analises econômicas em prever a maior crise financeira contemporânea, levando o G20 a pedir a ambas as instituições desenvolver um “exercício” de simulação e alerta precoce que pudesse ajudar as autoridades econômicas a identificar riscos e vulnerabilidades que poderiam levar a novos choques sistêmicos.

Assustam os números revelados pelo artigo: 38 das economias avançadas e emergentes acompanhadas pelo modelo têm risco médio, e 7 economias, principalmente da Europa e da Ásia, estão em alto risco de estresse financeiro de empresas. E talvez mais preocupante ainda é a rapidez da deterioração: entre os 58 países acompanhados, o número em situação de risco baixo caiu de 41 no primeiro trimestre de 2021 para menos de 9 no terceiro trimestre de 2022.

O alerta do FMI, portanto, aponta para um quadro que muitos economistas chamariam de enorme “fragilidade financeira”, e que nenhuma autoridade monetária pode mais ignorar. Ela reflete um dilema que cada dia mais é presente nas atas dos bancos centrais: seus mandatos em geral incluem uma meta de inflação, a estabilidade do setor financeiro e “fomentar o bem-estar econômico da sociedade”. Este último, muitas vezes interpretado como a manutenção do pleno emprego, é, ou deveria ser, o objetivo último de qualquer política econômica em uma sociedade democrática moderna.

Este dilema somente se ampliou nos últimos meses, já que derrubar uma inflação de custo com juros elevados pode requerer uma retração socialmente inaceitável do nível de produção e de emprego. Isto explica o porquê, apesar da política monetária mais dura, a maioria das economias centrais, especialmente os EUA e as da zona do euro, preferiram manter juros reais relativamente baixos. E provavelmente o alerta do FMI será não só um tema para os debates entre banqueiros centrais em todo mundo, como também das discussões no âmbito do G20 nos próximos meses.
E o Brasil com isto?

Uma grande parte das economias emergentes vem sentindo na pele o problema com maior intensidade. Muitas sofrem de crescimento muito baixo e têm sistema de crédito doméstico com prazos de empréstimos mais curtos que os encontrados nas economias mais ricas. Aumentar os juros nestas circunstâncias é uma receita certa de fragilidade financeira. No Brasil, particularmente, já em fins do ano passado, a taxa de inadimplência de empresas bateu recorde. Enquanto isso, 77,9% das famílias se declararam endividadas na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor anual das famílias. Um outro dado impressionante é que a cada 10 famílias, 3 atrasaram algum pagamento, maior valor desde o início da pesquisa.

Apesar de o caso das Americanas ser fraude, não há dúvida que a bola de neve das dívidas corporativas, em uma economia com prazos curtos e custos de financiamento altíssimos, aumenta o risco de bancarrota de forma mais proporcional aos juros básicos. A razão é simples: como o diferencial de juros (o spread) cobrado pelos bancos embute um risco de inadimplência, ele também aumenta quando os juros se elevam, criando uma certa “profecia autorrealizada”. É, portanto, emblemática, mas não excepcional, a situação das Lojas Marisa, que hoje se encontram com altíssima dívida de curto prazo, dificuldades de rolagem, e pagando juros que podem ser tornar impagáveis a qualquer momento.

No Brasil, assim como no resto do mundo, a taxa definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom), a Selic, influencia diretamente toda a estrutura de juros cobrados na economia – desde aquelas voltadas para o financiamento ao consumidor, ao capital de giro de pequenas e médias empresas, e ao financiamento de exportações.

Em relação ao financiamento de longo prazo, escasso no Brasil, sua influência perpassa a Taxa de Longo Prazo (TLP), cobrada pelo BNDES, um dos únicos financiadores de investimentos em saneamento básico, energia, expansão de pequenas e médias empresas, entre uma longa lista de empreendimentos para o desenvolvimento econômico e social do país. Hoje a TLP está em torno de inflação (IPCA) mais 6%, um custo de capital totalmente inviável para a grande maioria do setor produtivo que ainda ousa investir.

Talvez por isso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que quer um Brasil investindo, crescendo e empregando mais, escolheu a cerimônia de posse do novo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, para questionar fortemente a política de altos juros do BC. Para muitos, este debate é uma queda de braço política. Mas nós, economistas, especialmente os que acompanhamos o debate para além das nossas fronteiras, sabemos que é algo mais complexo. Algumas das ideias que sustentam os altos níveis da Selic, cantadas e requentadas por muitos analistas econômicos no Brasil, estão sendo questionadas no mundo todo por economistas de renome – como, e para citar só dois nomes, André Lara Resende no Brasil e o antigo economista-chefe do FMI Olivier Blanchard, no seu livro “Fiscal Policy under Low Interest Rate”.

Este debate se divide em pelo menos dois grandes temas. O primeiro é “conjuntural” e se relaciona à origem da onda inflacionária dos últimos anos e ao papel dos juros como instrumento para debelá-la. Esta discussão nos trouxe a um debate antigo, mas agora com mais participantes, sobre a relação entre inflação, política monetária e dívida pública. Poucos são aqueles que, com alguma segurança, acreditam que a dívida pública seja o principal determinante da inflação a longo prazo, ou que juros elevados são a forma de enfrentar a carestia no curto e no longo prazo.

De fato, todos economistas sabemos que a macroeconomia, enquanto ciência social, vive uma profunda crise de identidades. Esta crise não é de hoje. Porém, ela se aprofundou a partir de 2009, quando os economistas, com poucas exceções, foram criticados, inclusive pela rainha da Inglaterra, pela incapacidade de antecipar uma crise sem precedentes gerada no berço do capitalismo moderno.

Um artigo rápido não poderia fazer jus ao debate em curso, mas é suficiente dizer que hoje poucos de nós, de qualquer persuasão de ideias, diriam com segurança que a política monetária é o instrumento para debelar este ou qualquer outro surto inflacionário. Porém, muitos arriscariam dizer que manter juros nas alturas agora é um caminho certo para um crescimento dos encargos da dívida pública, em um país que já utiliza 23% da receita fiscal para pagar juros; e que é uma receita certa para mais falência de empresas e famílias, de mais desemprego, de menor competitividade, entre outras nefastas consequências.



ROGÉRIO STUDART – Senior fellow do CEBRI, foi professor da UFRJ e diretor-executivo no BID e no Banco Mundial

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