quarta-feira, 22 de junho de 2022

Modulação dos efeitos nos julgamentos recentes das causas tributárias: uma visão crítica

Insegurança jurídica pela falta de uniformidade e critérios para determinação do termo inicial




Nos últimos dois anos pudemos verificar, após muito tempo, que o Direito Tributário e Financeiro voltou aos holofotes das discussões jurídicas, permanecendo em contínua evidência, ainda hoje, face aos inúmeros temas que foram, e têm sido, objeto de apreciação recente por parte do nosso Supremo Tribunal Federal (STF), resgatando um protagonismo e relevância que nunca deveria ter perdido, uma vez que a ele cabe regular a forma pela qual o Estado deve ser financiado para desempenhar suas atividades, e nos prover com os serviços que se propõe, fato que por si só revela a sua grande importância para o convívio em sociedade.

A geração de riquezas e obtenção de recursos financeiros é algo necessário para qualquer nação, que dentro dos seus propósitos políticos de autodeterminação precisa regular a vida em sociedade de seus cidadãos e lhes conferir condições básicas para que essa convivência seja harmônica.

O funcionamento do Estado (lato sensu) imprescinde, portanto, de recursos monetários, ainda mais no caso do Brasil cuja Constituição de 5 de outubro de 1988 é pródiga na concessão de direitos e garantias ao seu povo, sendo que esse financiamento, de forma primária, se dá através da expropriação financeira e legal dos seus “súditos” mediante a imposição das diversas espécies tributárias constitucionalmente previstas (e.g. impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições). Esse é o preço que pagamos por termos optado viver em uma sociedade politicamente organizada e que busca o bem comum[1].

O poder de tributar conferido ao Estado (lato sensu) pelo seu povo, por intermédio da Constituição, não pode, contudo, ser exercido de forma ilimitada, devendo se pautar por parâmetros normativos pré-estabelecidos, sendo uma concessão excepcional de intervenção no direito individual de propriedade dos cidadãos que concordaram em contribuir, destinando parcela dos seus bens e riquezas para o financiamento estatal, desde que observado o devido processo legal (due process of law).

O exercício ilimitado do poder de tributar sobre um determinado povo se revela arbitrário e induz desigualdade, pois acaba por privilegiar uma minoria em detrimento do todo. Nesse ponto, é sempre importante lembrar a célebre expressão, “the power to tax involves the power to destroy” trazida pelo Chief Justice John Marshall no conhecido caso McCulloch v. Maryland julgado pela Suprema Corte americana (1819) e que sintetiza o também famoso provérbio bíblico: “é pela justiça que um rei firma seu país, mas aquele que o sobrecarrega com muitos impostos, o arruína” (PV. 29,4).

A apreciação e julgamento recente de causas tributárias pelo STF devem, portanto, ser motivo de orgulho e satisfação para nós tributaristas, pois parecem revelar que os contribuintes estão cada vez mais ciosos da sua importância para a sociedade e que a nossa resiliente Constituição dispõe de mecanismos de controle importantes e que têm sido manejados de forma competente com vistas a corrigir eventuais excessos do Estado no desempenho da sua função legislativa e administrativa tributária, impedindo, assim, o exercício ilimitado do poder de tributar.

São exemplos, dentre outros, de temas tributários relevantes que estiveram na pauta de julgamento da nossa suprema corte nos últimos dois anos, seja em âmbito de controle concentrado de constitucionalidade e mesmo de repercussão geral, com decisões ora favoráveis aos contribuintes, ora ao fisco:a) o desfecho da “tese do século” na qual ficou assentado que o ICMS destacado não compõe a base de cálculo das contribuições PIS/Cofins (RE n.° 574.706);
b) a definição acerca da constitucionalidade da incidência do ISS e exclusão do ICMS sobre as atividades de cessão e licenciamento de software (ADIs n.ºs 1945 e 5659);
c) o entendimento favorável ao fisco federal sobre a inclusão do ICMS e do ISS na base de cálculo da CPRB (REs n.°s 1.187.264 e 1.285.845);
d) a invalidade da cobrança e exigência do diferencial de alíquotas do ICMS por ausência de lei complementar (RE n.° 1.287.019 e n.° ADI 5469); e) a impossibilidade de estados e Distrito Federal instituírem o ITCMD sem existência prévia de lei complementar que regule a matéria (RE n.° 851.108);
e) a compatibilidade com a Constituição Federal da contribuição ao Incra (RE n.° 630.898);
f) a validação da incidência do imposto de renda sobre depósitos bancários de origem não comprovada, considerando o art. 42 da Lei n.° 9.430/1996 compatível com o texto constitucional (RE n.° 855.649);
g) a definição no sentido de que a inadimplência do usuário não afasta a incidência ou a exigibilidade do ICMS sobre serviços de telecomunicações (RE n.° 1.003.758);
h) a conclusão acerca da não incidência do IRPJ e da CSLL sobre a taxa Selic em ação de repetição de indébito por não se traduzir em acréscimo patrimonial (RE n.° 1.063.187);
i) a impossibilidade de os estados estabelecerem alíquotas majoradas e diferenciadas de ICMS e sem observância ao princípio da seletividade em relação às operações com energia elétrica e serviços de telecomunicações (RE n.° 714.139);
j) a inconstitucionalidade de os estados gravarem pelo ICMS as operações de transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo titular (ADC n.° 49).

Em que pese as causas tributárias terem movimentado bastante a pauta de julgamento do STF nos últimos tempos, o que é de todo salutar, um fato nos chama a atenção, qual seja: as hipóteses em que as decisões proferidas se revelaram contrárias aos interesses do fisco, e a corte suprema possibilitou restringir e limitar os seus efeitos a partir de critérios e parâmetros questionáveis e não uniformes com base em argumentos consequencialistas, muitas vezes não comprovados, de perda de arrecadação e descontrole das finanças públicas[2].

A regra geral, e que foi herdada da legislação norte-americana, em relação ao nosso regime jurídico de controle de constitucionalidade se refere à teoria da nulidade do ato reputado inconstitucional. Isso significa que silente o tribunal acerca da questão relativa aos efeitos de determinada decisão que repute inválida, por ser inconstitucional, os efeitos devem se dar de forma retroativa, isto é, são reputados como ex tunc.

Porém, o art. 27 da Lei 9.868/1999, hoje de inconteste aplicação aos casos que envolvem também o controle incidental de normas infraconstitucionais ou atos normativos, vincula, de forma excepcional, a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que julgar inconstitucional tais espécies normativas, estando a modulação vinculada, necessariamente, às “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”.

Nesse contexto, a princípio, a modulação dos efeitos das referidas decisões em controle de constitucionalidade (ex nunc) deveria se dar unicamente, de forma excepcional, ficando a critério da corte constitucional a definição do termo a quo para períodos futuros a contar:a) da data da sessão que concluir o julgamento;
b) da data da publicação da ata de julgamento;
c) da publicação do acórdão;
d) do trânsito em julgado;
e) da data da publicação da parte dispositiva do acórdão no Diário Oficial da União; ou mais recentemente,
f) de data futura a ser definida pelos ministros (Temas 1093 e 745 de repercussão geral).

Há, portanto, uma excessiva discricionaridade da corte para fixação de ponto tão importante e que pode afetar de forma tão desigual as relações entre fisco e contribuintes.

O que se tem visto, contudo, é que a regra geral de retroação dos efeitos da decisão que define uma norma como inconstitucional, tem sido reiteradamente discutida e na maior parte das vezes excepcionada pelo STF quando do julgamento, em especial nas causas tributárias, cujo desfecho é favorável ao contribuinte, tendo essa corte inovado ainda, no que tange ao termo a quo para definição dos efeitos futuros, como foi o caso do Tema 1093 (inconstitucionalidade do Difal, a partir de 2022) e do Tema 745 (majoração indevida das alíquotas do ICMS nas operações com energia elétrica e serviços de telecomunicações, a partir de 2024).

Outro ponto que merece nossa atenção é o manejo recorrente, por parte do fisco ou mesmo dos contribuintes, do Recurso de Embargos de Declaração como meio adequado para discutir a modulação dos efeitos da decisão, o que, em nosso sentir, desvirtua a sua real função que é de corrigir eventual omissão, obscuridade ou contradição das decisões. Tal possibilidade somente seria possível, em nossa avaliação, se o pedido de modulação tivesse sido suscitado no curso do processo, pelas partes envolvida, sem que houvesse, para tanto, um pronunciamento expresso do tribunal a esse respeito em seu acórdão final.

Como já tivemos a oportunidade de mencionar em outra oportunidade, no que tange à modulação das decisões salvaguardando retroativamente apenas o direito daqueles contribuintes que optaram por propor ações individuais, tem-se que a sua adoção em sucessivos julgamentos tributários se traduz em um fator que induz a cultura do litígio e o ajuizamento de ações tributárias ativas, sobrecarregando o Judiciário, de forma que quem não opta por litigar, e confia nos mecanismos existentes para o controle concentrado da constitucionalidade, pode acabar penalizado por sua prudência, o que tem o condão de afetar também a livre concorrência[3].

Outra consequência importante que pode resultar da modulação reiterada dos efeitos das decisões em matéria tributária, sem que haja qualquer parâmetro ou critério técnico pré-definido em lei, decorre do aspecto pedagógico inerente ao próprio controle de constitucionalidade, pois ao limitar a aplicação das suas decisões em termos tributários, impedindo a sua retroatividade em termos gerais e abstratos, o STF, de forma indireta, está chancelando que o nosso legislativo continue produzindo normas inconstitucionais, viabilizando, assim, mesmo que temporariamente, a arrecadação indevida de tributos, na expectativa de que, em caso de modulação, os cofres públicos sejam resguardados[4].

Parece-nos, portanto que já passou da hora de a sociedade jurídica e organizada se mobilizar no sentido de discutir de forma muito séria a modulação dos efeitos de uma decisão no âmbito do controle de constitucionalidade, exigindo que sejam estabelecidos em lei limites, critérios e parâmetros objetivos para sua aplicação, reduzindo assim, o grande subjetivismo que temos presenciado nas causas tributárias e conferindo maior segurança jurídica a todos que confiam no sistema e mecanismos existentes para auferir a compatibilidade das normas com o texto constitucional.

DANIEL DIX – Diretor da ABDF e professor

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