O que origina o contencioso tributário?
Mudanças legislativas que aumentem eficiência do contencioso são válidas,
mas, sozinhas, são insuficientes
Em fevereiro de 2022, foi publicado o Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, elaborado pelo Núcleo de Tributação do Insper[1] em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[2] (5ª edição da Série “Justiça Pesquisa”). Por meio de análises quantitativas e qualitativas, a pesquisa teve como objetivo identificar como as soluções de litígios na área tributária podem ser aprimoradas, buscando qualificar a prestação jurisdicional de acordo com os princípios constitucionais da celeridade, duração razoável do processo, contraditório e ampla defesa.
Para tanto, o CNJ e a equipe propuseram 12 hipóteses a serem exploradas a partir dos resultados obtidos em resposta a 75 perguntas – desdobradas em 142 – postas no Edital de Convocação Pública CNJ nº 1/2021 e na proposta apresentada pelo Insper. Para coletar dados sobre os 128 órgãos e entidades abrangidos pela pesquisa[3], a equipe de pesquisa adotou quatro metodologias complementares: 1) a extração de expressões regulares (regex) dos Diários Oficiais de Justiça[4]; 2) a extração dos dados disponíveis no Datajud[5], do CNJ; 3) a transmissão de pedidos via Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011); e 4) o envio de questionários de entrevistas.
Dentre os pontos investigados, a quantidade de processos por tributo, representada pela pergunta 2 da pesquisa, merece destaque. A partir da extração de regex dos Diários Oficiais e de dados disponíveis no Datajud[6], foi possível identificar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), de competência dos municípios e do Distrito Federal, como o tributo com maior volume de processos judiciais.
Superada a surpresa inicial dos pesquisadores da equipe com o resultado obtido em ambas as metodologias adotadas, a partir de uma análise crítica, foi possível formular possíveis justificativas para a elevada quantidade de processos de IPTU no Judiciário.
O IPTU possui ampla base de contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, e é exigido pelos mais de 5.500 municípios do país e pelo Distrito Federal. Esse cenário é potencializado, ainda, pela característica de os lançamentos serem realizados por imóvel (obrigação propter rem) e não contra o sujeito passivo do imposto (proprietário, titular do domínio útil ou possuidor do imóvel). Dessa forma, e considerando a falta de estrutura de muitos municípios para promoverem a cobrança extrajudicial da dívida tributária inadimplida, é possível deduzir que os entes se valem do Poder Judiciário para viabilizar a cobrança do imposto não pago ou pago a menor.
Isso fica reforçado, adicionalmente, pelo fato de os dados analisados terem abrangido a totalidade dos processos tributários, incluindo ações exacionais e antiexacionais[7]. Como levantado pelo próprio CNJ em seu relatório Justiça em Números (2021), as execuções fiscais, no ano de 2020, representavam 52,3% do acervo de processos em tramitação no Judiciário.
Independentemente dos motivos que conduzam a esse resultado, que merecem e serão investigados com maior profundidade em pesquisas futuras do Núcleo de Tributação do Insper, é importante registrar – e adotarmos como diretriz norteadora – que o número de processos, como índice isolado, não é capaz de medir ou revelar a complexidade de determinado tributo.
Como apontado nas conclusões à hipótese 8 da pesquisa, que investigou a correlação entre os elevados estoques processuais e a complexidade da legislação tributária, o IPTU é (teoricamente) um imposto de baixa complexidade e exemplo escolástico de tributo sujeito ao lançamento de ofício, isto é, que não exige que o contribuinte realize a interpretação da legislação para apurar e informar ao Fisco o montante devido.
Em pesquisa do Observatório do Contencioso[8], o Núcleo de Tributação do Insper buscou avaliar o estoque de processos por tributo, considerando o valor (R$) envolvido nas disputas e não a quantidade delas. De acordo com os dados obtidos, referentes ao ano de 2019, na relação entre a arrecadação por tributo e o estoque de contencioso nas esferas administrativa e judicial, o IPTU sequer figurou como o tributo municipal mais litigado.
Assim, um olhar mais aprofundado e comparativo dos resultados encontrados nas pesquisas nos revela, na realidade, que a investigação do que origina o contencioso tributário deve ir além do que o simples relato de quantos processos existem sobre determinado tributo ou de qual o valor envolvido nesses processos.
Há de se destacar que o estudo do contencioso tributário é relevante porque o contencioso é uma disfunção do sistema tributário; ele aumenta o custo de conformidade tributária e exige que os contribuintes aloquem seus recursos em atividades improdutivas[9], ao invés de produzirem e gerarem empregos e renda. O contencioso tributário, então, reduz o potencial de crescimento econômico do país.
Isso se torna ainda mais alarmante quando comparamos o Brasil com o cenário internacional. Enquanto os processos tributários brasileiros, administrativos e judiciais, totalizavam, em 2019, a quantia de R$ 5,44 trilhões, ou seja, 75% do PIB[10], dados da OCDE demonstram que, em 2013, a mediana do contencioso administrativo tributário dos países da OCDE representava 0,28% do PIB e, para um grupo de países da América Latina, 0,19% do Produto Interno Bruto (PIB)[11]. Ainda que consideremos apenas o contencioso administrativo tributário federal brasileiro (número diretamente comparável às estimativas internacionais), teríamos 15,9% do PIB, número bem superior à mediana internacional.
E o que gera esse tão elevado contencioso tributário no Brasil?
Fornecer subsídios para essa resposta é o objetivo principal das pesquisas que desenvolveremos ao longo de 2022 no Núcleo de Tributação. Enquanto trabalhamos no levantamento e análise de dados, gostaríamos de utilizar a InsperTax para provocar reflexões.
A literatura internacional sugere uma relação entre o contencioso tributário, a insegurança jurídica e a complexidade da legislação tributária[12].
O relatório “Tax Certainty”[13], do FMI e da OCDE, publicado em 2017 e atualizado em 2018 e 2019, investiga as origens da incerteza tributária e seu impacto na atividade econômica. A análise elaborada pelas organizações aponta seis principais causas para a insegurança jurídica em matéria tributária: 1) imprevisibilidade das políticas e leis tributárias; 2) imprevisibilidade na aplicação das regras tributárias; 3) incerteza quanto à resolução dos litígios tributários; 4) incertezas decorrentes de novas tecnologias e modelos de negócios; 5) comportamento dos contribuintes; e 6) ausência de adoção de padrões internacionais de tributação. Quatro das seis causas da incerteza estão relacionadas ao contencioso e à complexidade.
O estudo “Tax Uncertainty: Economic Evidence and Policy Responses”, elaborado pela Comissão Europeia, de forma semelhante, conclui que a incerteza tributária está relacionada: 1) à complexidade da legislação tributária, 2) à imprevisibilidade ou inconsistência no tratamento conferido pela autoridade fiscal aos contribuintes e 3) às mudanças frequentes no sistema tributário.
Por sua vez, o artigo “What are the Drivers of Tax Complexity for MNCs Global Evidence”, publicado pelos pesquisadores do Índice “Tax Complexity”, compreende que a complexidade tributária decorre, entre outros fatores, da 1) ambiguidade e incerteza na interpretação da legislação tributária, e 2) das excessivas alterações legislativas.
Embora ainda não tenhamos encontrado a resposta à nossa pergunta, a literatura internacional e os dados que coletamos em nossas pesquisas empíricas sugerem que o estudo do contencioso tributário precisa ser abrangente. É necessário avaliar também a insegurança jurídica e a complexidade da legislação tributária. Um é consequência e sintoma dos outros. Mudanças legislativas que visem a aumentar a eficiência do contencioso tributário são válidas, mas, sozinhas, são insuficientes.
Esperamos que as reflexões acima direcionem nossos leitores a escaparem de conclusões precipitadas e a buscarem, como nós, a melhor compreensão dos fatores que originam o contencioso tributário.
CARLA MENDES NOVO – Pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper
LARISSA LUZIA LONGO – Pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper
LEONARDO ALVIM – Pesquisador do Núcleo de Tributação do Insper
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